cadernos de análise e prospetiva CULTIVAR
N.º 9
SETEMBRO 2017
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Considerar a identidade gastronómica como
reflexo
do território e dos seus povos e culturas
remete-nos
para algumas ideias aparentemente evidentes, mas
que nem sempre se reúnem à mesa ou fora dela.
A primeira é a noção de
território (alimentar) como
espaço histórico social-
mente construído, tendo
por base sistemas agrários
específicos. A segunda é a
ideia de que a relação do
povo de um território com
a sua comida é a essência da sua cultura alimen-
tar e esta relação é tão ou mais importante para
a saúde como o conteúdo da mesma. A terceira,
decorrente das anteriores, versa a relação estreita
entre sistemas agrários, identidade, cultura, saúde
e paisagens alimentares.
Nesta perspetiva e como concluímos neste artigo,
a valorização da identidade gastronómica portu-
guesa não se pode dissociar dos sistemas agrá-
rios tradicionais e da melhoria e/ou preservação
das paisagens alimentares que os retratam. Desa-
fio importante, tendo em conta as possíveis desco-
nexões entre ambos decorrentes da recente evolu-
ção do mundo rural.
Esta valorização deveria
assim contribuir para níveis
acrescidos de coerência
entre os sistemas agrários
tradicionais, as paisagens e os serviços em nome
delas oferecidos, ou seja, à (re)invenção da gastro-
nomia tradicional em curso deve corresponder uma
(re)conexão entre sistemas e paisagens alimentares
tradicionais.
Sistemas agrários e paisagens alimentares
Um sistema alimentar reúne todos os elementos
e atividades relacionados com a produção, pro-
cessamento, distribuição, preparação e consumo
de alimentos. Apesar da evolução recente do sis-
tema alimentar global ser no sentido da crescente
“industrialização” e “desterritorialização” da produ-
ção de alimentos, a agricultura e os sistemas agrá-
rios locais continuam a ter um papel importante na
produção e consumo ali-
mentar globais.
Marcel
Mazoyer
(2001)
refere que um sistema agrá-
rio
“é um modo de explora-
ção do meio historicamente
constituído e durável, um
conjunto de forças de produção adaptado às con-
dições bioclimáticas de um espaço definido e que
responde às condições e às necessidades sociais do
momento”
2
.
Desta forma, cada sistema agrário é a expressão
de um ou mais tipos de agricultura historicamente
constituídos e geograficamente localizados e é
composto por um ecossistema cultivado e um sis-
tema social produtivo. Este último permite explo-
rar (sustentavelmente) a fertilidade do ecossistema
cultivado correspondente, ambos configurando
uma paisagem específica.
Os sistemas agrários são
dinâmicos e respondem às
necessidades de desenvol-
vimento das sociedades,
em particular, das socie-
dades rurais estabelecidas
num determinado território. As paisagens são por
isso dinâmicas, podendo retratar diferentes siste-
mas e estes, por sua vez, diferentes tipologias e
modelos de produção, e respetivas interações. A
teoria dos sistemas agrários permite-nos perceber
o conceito de paisagem como um construto social
necessário à compreensão da evolução e interac-
ções sociais do sistema agrário e do território onde
aquele se localiza.
2
Mazoyer, M., Roudart (2001), pág. 11
… a valorização da identidade
gastronómica portuguesa não se
pode dissociar dos sistemas agrários
tradicionais e da melhoria e/ou
preservação das paisagens alimentares
que os retratam.
… paisagem como um construto social
necessário à compreensão da evolução e
interacções sociais do sistema agrário e
do território onde aquele se localiza.