Paisagens alimentares e a (re)invenção da gastronomia em Portugal
39
Na medida em que um sistema agrário não pode
ser analisado independentemente das atividades
a montante ou da utilização que é feita dos seus
produtos pelas atividades a jusante (e pelos consu-
midores), utilizamos neste artigo o conceito de sis-
tema alimentar. Com ele designamos
um modo de
produção, processamento,
distribuição, preparação e
consumo de alimentos his-
toricamente conformado.
A
paisagem alimentar
pode,
assim, retratar a evolução
do sistema alimentar.
A geografia tem apoiado essa ligação.
Paisagens ali-
mentares
utilizam-se para diversos fins, incluindo,
por exemplo, o entrelaçamento que se pode esta-
belecer entre um sistema agrário e uma cultura tra-
dicionais, a saúde e a gastronomia.
Este será o tema a tratar, tendo presente três mitos
atuais: i) o nutriente como mais importante que o
alimento; ii) a consequente “cientificação” da ali-
mentação e a necessidade
de apoio técnico para nos
alimentarmos corretamente
e; iii) o objetivo da alimenta-
ção ser, em primeiro lugar,
a obtenção de saúde física
(noção relativamente nova,
apesar de não parecer).
Nesta perspetiva, a alimen-
tação separou-se da comunidade, da família, do
prazer e da espiritualidade, ou seja, da relação com
o mundo natural envolvente, com a cultura e com
a identidade territorial. Isto contribuiu para a dis-
tanciar da saúde, aspeto crescentemente valorizado
pelo turismo pós-moderno.
Paisagens alimentares e saúde
A nossa saúde não é independente da saúde do
sistema alimentar onde estamos inseridos. Ela
depende de muitas relações nesse sistema. Note-
-se que um ser omnívoro necessita, regularmente,
de entre 50 e 100 compostos químicos para se man-
ter saudável.
A perceção de que a humanidade poderá ter sacri-
ficado a sua saúde ao des-
vincular crescentemente os
produtos alimentares da
cultura culinária e gastro-
nómica tradicionais foi ori-
ginalmente levantada pelo
médico Weston Price, no
início do século passado
3
.
Sabemos que os sistemas agrários “modernizados”
enfraqueceram a ligação com os solos, os alimentos
e as culturas locais originando uma disfunção eco-
lógica que, muitas vezes, interrompe o ciclo natu-
ral dos nutrientes. Isto porque, em grande medida,
privilegiaram a quantidade, a substituição de vege-
tais por sementes, a simplificação dos sistemas de
produção e os alimentos refinados e processados.
Com isto contribuíram tam-
bém para a erosão da cul-
tura alimentar tradicional.
De facto, a agricultura indus-
trial conseguiu nas últi-
mas oito décadas aumen-
tar significativamente a
produtividade por hectare.
Mas parece estar a produ-
zir, essencialmente, mais calorias por hectare e não
mais nutrientes adequados. Com isso favoreceu o
surgimento explosivo de várias doenças. Uma ver-
dadeira pandemia, segundo vários autores e orga-
nismos das Nações Unidas, como a Organização
3
Médico dentista que dedicou a vida a analisar as doen-
ças decorrentes da “dieta ocidental”. Publicou vários tex-
tos, entre os quais,
Nutrition and Physical Degradation
, em
1939.
… os sistemas agrários “modernizados”
enfraqueceram a ligação com os solos, os
alimentos e as culturas locais originando
uma disfunção ecológica que, muitas
vezes, interrompe o ciclo natural dos
nutrientes.
… a agricultura industrial conseguiu
nas últimas oito décadas aumentar
significativamente a produtividade por
hectare. Mas parece estar a produzir,
essencialmente, mais calorias por hectare
e não mais nutrientes adequados. Com
isso favoreceu o surgimento explosivo de
várias doenças.