cadernos de análise e prospetiva CULTIVAR
N.º 9
SETEMBRO 2017
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que a terra à nossa volta
produz, isso é recebido com
surpresa.
Entrevistei também Gas-
tón Acurio e percebi por-
que é que ele é uma perso-
nagem tão carismática, capaz de mobilizar um país
inteiro e, pelo menos na altura, com uma populari-
dade muito superior à de qualquer político. Disse-
-me ele: “Isto é só o começo de um grande plano
que vai demorar ainda muito tempo e que nasce
da sã, justa e compreensível indignação dos jovens
peruanos, que não entendem porque é que um país
tão rico, com tantos recursos, tanta história, tantas
oportunidades, continua a ser considerado como
do Terceiro Mundo, apenas
exportador de matérias-
-primas. Esses jovens pen-
sam que podem contribuir
de alguma forma para que
isso mude.”
Homens como Gastón Acurio e Bernardo Roca Rey
perceberam que a cozinha podia ser o tema que
uniria todos os peruanos. “É uma atividade que
toca a todos: agricultura, pesca, indústria, meio
ambiente, os negócios, a promoção de um país no
mundo, a cultura, a arte.” Apesar de ser ele próprio
um
chef
famoso, Gastón Acurio não está a falar aqui
da promoção de restaurantes ou de
chefs
-estrela. A
ideia é muito mais profunda – e generosa.
“Se olhas para a cozinha
apenas como um espaço
lúdico, de prazer, se não te
importas com o que está à
tua volta, então, sim, tra-
ta-se apenas de comer,
de desfrutar, para os que
podem pagar”. Num país
como o Peru, explicou
Acurio, “onde a riqueza choca permanentemente
com a pobreza, onde o prazer pode tornar-se imo-
ral porque há crianças que
sofrem de má-nutrição, foi
mais fácil os cozinheiros
reconhecerem que a cozi-
nha tinha que ser algo mais
do que dar de comer aos
poucos que podem pagar.”
Um exemplo prático, entre muitos outros que relato
nesse artigo: “Num dos fóruns de debate do Festi-
val Mistura, a ministra do Desenvolvimento e Inclu-
são Social, Carolina Trivelli, sentou-se no palco para
falar da necessidade de ‘comer saudável, comer o
que é nosso’. ‘Não queremos apenas que as crian-
ças comam bem, mas que sejam portadoras das
tradições das suas regiões. Os grãos andinos estão
no centro desta estraté-
gia’, declarou Trivelli, que
dias depois assinaria com
a Apega um acordo para
que vários produtos andi-
nos, nomeadamente a qui-
noa, fossem introduzidos nas ementas das escolas.
‘É fundamental a aliança com os produtores locais
e os cozinheiros. As nossas crianças precisam de
saber de onde vêm os alimentos.”
Gastón Acurio reforçou a ideia: “Há milhares de
anos construiu-se no Peru uma biodiversidade
em que as pessoas tinham segurança ambiental.
Não havia crianças subnutridas porque comiam o
que tinham. Depois veio o
marketing
e disse que
tinham de beber leite e
comer massa e as pessoas
começaram a abandonar a
quinoa e outros produtos.
As políticas públicas deram
ouvidos ao
marketing
e
os programas de assistên-
cia alimentar enviavam de
Lima para o resto do país
leite, açúcar, massa, arroz.
Hoje, está-se a recuperar cadeias produtivas locais
em dietas ricas, saudáveis, coerentes.”
… a cozinha podia ser o tema que uniria
todos os peruanos. “É uma atividade
que toca a todos: agricultura, pesca,
indústria, meio ambiente, os negócios,
a promoção de um país no mundo, a
cultura, a arte”.
… os cozinheiros reconhecer[a]m que a
cozinha tinha que ser algo mais do que
dar de comer aos poucos que podem
pagar
… um exemplo: o porco bísaro. Raça
autóctone do Norte do país, o porco
bísaro estava quase extinto em
Portugal… Em 1995, Carla Alves foi à
procura dos poucos animais que ainda
existiam e foi a partir desses exemplares
que se deu início a um trabalho de
recuperação da raça.