Vamos comer o que nos rodeia – e isso é só o início da mudança
25
nas sobre restaurantes, e
que não estivesse ligada a
trabalhos sobre agricultura,
saúde, economia, cultura.
Fiquei ainda mais convencida desta ideia quando
em 2012 fiz outra viagem, desta vez ao Peru, país
onde também se anunciava a chegada de uma
“revolução gastronómica”. O caso era diferente do
dinamarquês. Tratava-se aqui de um país com forte
cultura gastronómica mas que, por razões geográ-
ficas, se encontrava divi-
dido em três. A costa, a
montanha e a selva eram
três realidades distintas,
com hábitos gastronómi-
cos e ingredientes diferen-
tes, que, muitas vezes, se
ignoravam.
Fui assistir ao Festival Mistura, em Lima, a capital,
e aproveitei para perceber como é que a revolução
tinha começado. Concluí que havia várias seme-
lhanças com o que se passava na Dinamarca. As
coisas não acontecem por acaso, são resultado de
uma estratégia pensada por pessoas que têm uma
visão – neste caso Bernardo Roca Rey, um antigo
vice-ministro da Cultura que se tornou depois pre-
sidente da Apega, a Socie-
dade Peruana de Gastrono-
mia; e, sobretudo, Gastón
Acurio,
chef
tornado figura
mediática, que com o seu
programa de televisão via-
jou pelo país e mostrou aos
próprios peruanos o que se
comia do outro lado, apre-
sentando a comida da
costa a quem vivia na selva e na montanha e vice-
-versa. O país gastronómico começou aí a desco-
brir-se a si mesmo.
Figuras carismáticas como Acurio no Peru ou Red-
zepi na Dinamarca são fundamentais, mas houve,
claro, uma visão política
que partiu da vontade de
tornar o Peru um destino
de turismo gastronómico e
uma referência para quem se interessa por gastro-
nomia. Explicou-me Bernardo Roca Rey na altura:
“O país vivia dividido por uma reforma agrária muito
forte, por uma distância que se tinha criado entre
os diferentes setores da sociedade, e eu entendi
que eram precisos argumentos que reforçassem a
autoestima dos peruanos. Saíamos de uma dita-
dura que tinha impedido
a liberdade de expressão
e a única coisa que exis-
tia eram anúncios de obras
gigantescas,
faraónicas,
que o Governo estava a rea-
lizar. Então, dizia nos meus
artigos [no jornal
El Comer-
cio
] que a história do Peru
era algo para o qual devíamos olhar. E não imagina
o êxito que isso teve num país tão dorido.”
Cozinheiro amador, Roca Rey inventou um con-
ceito: a cozinha novo-andina. Começou a cozinhar
com produtos que não eram valorizados, associa-
dos aos camponeses pobres. Conto no texto: “Foi
buscar os grãos como a quinoa, a kiwicha, usou
as imensas variedades de
ajís (uma espécie de mala-
gueta), as inúmeras espé-
cies de batatas e convidou
as pessoas a comerem o
que nascia no Peru.”
Chegamos mais uma vez à
ideia essencial: por estra-
nho que pareça, em mui-
tos casos e muitos países, as pessoas deixaram
de comer o que se produzia na sua terra, transfor-
mando a alimentação e colocando no prato pro-
dutos vindos de longe, deixando uma profunda
pegada ecológica e condenando a agricultura local.
Quando chega alguém que propõe que se coma o
As coisas não acontecem por acaso, são
resultado de uma estratégia pensada por
pessoas que têm uma visão…
Figuras carismáticas como Acurio no
Peru ou Redzepi na Dinamarca são
fundamentais, mas houve, claro, uma
visão política que partiu da vontade de
tornar o Peru um destino de turismo
gastronómico e uma referência para
quem se interessa por gastronomia.
… por estranho que pareça, em muitos
casos e muitos países, as pessoas
deixaram de comer o que se produzia na
sua terra, transformando a alimentação
e colocando no prato produtos vindos de
longe, deixando uma profunda pegada
ecológica e condenando a
agricultura local.