CULTIVAR 9 - Gastronomia

cadernos de análise e prospetiva CULTIVAR N.º 9 SETEMBRO 2017 38 Considerar a identidade gastronómica como reflexo do território e dos seus povos e culturas remete-nos para algumas ideias aparentemente evidentes, mas que nem sempre se reúnem à mesa ou fora dela. A primeira é a noção de território (alimentar) como espaço histórico social- mente construído, tendo por base sistemas agrários específicos. A segunda é a ideia de que a relação do povo de um território com a sua comida é a essência da sua cultura alimen- tar e esta relação é tão ou mais importante para a saúde como o conteúdo da mesma. A terceira, decorrente das anteriores, versa a relação estreita entre sistemas agrários, identidade, cultura, saúde e paisagens alimentares. Nesta perspetiva e como concluímos neste artigo, a valorização da identidade gastronómica portu- guesa não se pode dissociar dos sistemas agrá- rios tradicionais e da melhoria e/ou preservação das paisagens alimentares que os retratam. Desa- fio importante, tendo em conta as possíveis desco- nexões entre ambos decorrentes da recente evolu- ção do mundo rural. Esta valorização deveria assim contribuir para níveis acrescidos de coerência entre os sistemas agrários tradicionais, as paisagens e os serviços em nome delas oferecidos, ou seja, à (re)invenção da gastro- nomia tradicional em curso deve corresponder uma (re)conexão entre sistemas e paisagens alimentares tradicionais. Sistemas agrários e paisagens alimentares Um sistema alimentar reúne todos os elementos e atividades relacionados com a produção, pro- cessamento, distribuição, preparação e consumo de alimentos. Apesar da evolução recente do sis- tema alimentar global ser no sentido da crescente “industrialização” e “desterritorialização” da produ- ção de alimentos, a agricultura e os sistemas agrá- rios locais continuam a ter um papel importante na produção e consumo ali- mentar globais. Marcel Mazoyer (2001) refere que um sistema agrá- rio “é um modo de explora- ção do meio historicamente constituído e durável, um conjunto de forças de produção adaptado às con- dições bioclimáticas de um espaço definido e que responde às condições e às necessidades sociais do momento” 2 . Desta forma, cada sistema agrário é a expressão de um ou mais tipos de agricultura historicamente constituídos e geograficamente localizados e é composto por um ecossistema cultivado e um sis- tema social produtivo. Este último permite explo- rar (sustentavelmente) a fertilidade do ecossistema cultivado correspondente, ambos configurando uma paisagem específica. Os sistemas agrários são dinâmicos e respondem às necessidades de desenvol- vimento das sociedades, em particular, das socie- dades rurais estabelecidas num determinado território. As paisagens são por isso dinâmicas, podendo retratar diferentes siste- mas e estes, por sua vez, diferentes tipologias e modelos de produção, e respetivas interações. A teoria dos sistemas agrários permite-nos perceber o conceito de paisagem como um construto social necessário à compreensão da evolução e interac- ções sociais do sistema agrário e do território onde aquele se localiza. 2 Mazoyer, M., Roudart (2001), pág. 11 … a valorização da identidade gastronómica portuguesa não se pode dissociar dos sistemas agrários tradicionais e da melhoria e/ou preservação das paisagens alimentares que os retratam. … paisagem como um construto social necessário à compreensão da evolução e interacções sociais do sistema agrário e do território onde aquele se localiza.

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